Artigo

Quando nós somos os personagens da tragédia

Por Eduardo Ritter
Professor do Centro de Letras e Comunicação da UFPel
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Sou um leitor e admirador da jornalista e escritora mineira Daniela Arbex. Li seus três principais livros: Holocausto brasileiro (sobre a absurda e longa história do Hospital Colônia de Barbacena), Todo o dia a mesma noite (sobre a tragédia da boate Kiss) e Arrastados (sobre o rompimento da barragem da Vale de Brumadinho). São relatos pesados, tristes, deprimentes, mas necessários. É preciso termos registros bem documentados e, principalmente, ouvindo as vítimas de cada tragédia para que elas não se repitam. Eis a importância do jornalismo literário e de trabalhos de excelência como os de Daniela Arbex.

O último dos livros da autora mineira que conferi foi Arrastados. Aproveitei as férias de verão para ler a obra, até porque estava orientando um trabalho de conclusão de curso sobre ela. Enquanto lia as histórias dos personagens, pensava: "Nossa, que loucura. Quem morava em Brumadinho nas áreas atingidas nunca devia imaginar que um negócio desses iria acontecer". Esse sentimento aumentava quando procurei vídeos sobre o desastre e vi a lama passando por avenidas da cidade, levando tudo o que tinha pela frente. E eis que, poucos meses depois, eu (e todos nós) vi coisas inimagináveis: grandes cidades, potências econômicas do nosso Estado, sendo destruídas por inundações que estavam fora do nosso campo de projeção. Eu já morei, por exemplo, na Cidade Baixa, em Porto Alegre. Minha irmã mora lá até hoje. Nunca me passou pela cabeça a possibilidade de ver o bar que foi do meu tio, na Avenida Venâncio Aires, embaixo d'água. Assim como, aqui em Pelotas, sou um frequentador do Laranjal. Tenho amigos que moram lá. E nunca pensei que veria as imagens que vimos. Sem contar Lajeado, cidade onde minha filha mais velha mora: absolutamente destruída. E São Leopoldo? E Eldorado do Sul? E Canoas? Todas cidades que já frequentei. É como se fosse o fim do mundo para nós, personagens inseridos nessa tragédia.

Aí entra novamente a importância de trabalhos como os de Arbex. Ela contou, em entrevista posterior à publicação de Todo Dia a Mesma Noite, que achou que as pessoas não iriam querer contar as suas histórias e, surpreendentemente, encontrou um cenário contrário: as vítimas querem, sim, expor o horror da tragédia justamente para que algo seja feito. Portanto, mais uma vez nos deparamos diante de milhões de vozes querendo ser ouvidas. Ou seja, não há filmes, séries e livros suficientes para narrar o horror que estamos vivendo nas últimas semanas. Mas, mesmo assim, eles devem existir justamente para chocar e fazer com que os responsáveis por cada um desses desastres se sintam envergonhados e para que os que vão assumir o comando do poder público em qualquer esfera saibam: enquanto houver democracia e liberdade de imprensa, estaremos sempre de olho.

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